terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Mudando de cor

Uma mulher chega no salão de sempre no dia de sempre na hora de sempre. O seu cabelereiro de sempre pede pra ela sentar na cadeira de sempre e pergunta: "E aí? Que cor vai ser?". Imediatamente ela pensa... "Como assim que cor vai ser? O que ele quer dizer com isso? Eu venho aqui há anos pintar o meu cabelo, apenas para retocar a raiz e cobrir os fios brancos, sempre do mesmo tom da mesma marca. Será que ele acha que meu casamento está em crise e que eu não aguento mais sempre as mesmas conversas durante o jantar e o mesmo olhar acostumado de tanto faz se estou de longo ou de chinelo? Será que ele pensa que eu não suporto mais aquele trabalho que não tem nada a ver comigo, que eu aceitei jurando pra mim mesma ser temporário e que nunca mais tive forças pra sair e procurar aquele que eu realmente queria? Será que pra ele eu pareço alguém que todo fim de ano promete melhorar a alimentação, começar a fazer exercícios, ler mais livros e que acaba sempre deixando pra semana, mês, ano seguinte? Será que ele notou que eu não falo com a minha mãe há cinco anos por puro orgulho e teimosia desde que a gente teve aquela discussão durante o Natal por causa da maneira como eu educo os meus filhos? Será que ele acha que está na hora de mudar tudo isso e pintar a minha vida de outra cor?" Olha pra ele depois de segundos de silêncio e decide. Quer que o cabelo volte pra sua cor natural. De repente, se dá conta de que nem se lembra mais de que cor era o seu cabelo. Tinha mudado tantas vezes... Uma pra cada amor que teve. Se camuflando de acordo com os gostos alheios. Mudando sempre de hábitos, de amigos, de crenças, de sonhos. Onde será que foram parar seus próprios pensamentos e projetos? Que vida era essa que não era a dela e quem a estava vivendo se não era ela? Resolveu se convidar de volta pra própria vida. Levantou da cadeira sem dizer mais nenhuma palavra, deixando seu cabelereiro de sempre com uma cara nunca antes vista. Daria a volta ao mundo se fosse preciso. Poderia ser ainda muitas durante a vida, mas seria sempre ela mesma.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Ser ou Não ser?

Negação do "ser" enquanto verbo causador de inércia. Em vez de ser, estar. O ator é aquele que mostra ser possível "estar" de inúmeras maneiras diferentes de acordo com uma verdade que não é a dele próprio, mas que é uma verdade na medida em que vivida verdadeiramente por ele. Se é possível, na ficção, assumir outros "estares", também o deve ser fora dela. As pessoas não deveriam simplesmente detectarem suas características e aceitá-las como fatalidade. E sim, dedicarem suas vidas à busca da transformação interna daquilo que não gostam em si mesmas.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Utopia 2

No meu governo ideal, haveria uma reforma profunda na atual lei federal de incentivo à cultura. Nada de depender de pessoas que ganham uma grana dos projetos alheios para usarem seus contatos e influências captando recursos. Nada de depender da boa, geralmente má, vontade de empresas que pensam que você está pedindo um favor inconveniente ao propor que elas façam propaganda própria com dinheiro do governo. Nada de gastar milhões a partir de dinheiro público, cobrar ingressos caríssimos e ainda embolsar outros milhões de bilheteria. Nada de montanhas de projetos aprovados e encalhados por falta de patrocinador. Se as empresas podem usar 4% do seu imposto de renda devido patrocinando cultura, esses mesmos quatro por cento de todas as empresas deveriam ser destinados obrigatoriamente à cultura. Considerando que nesse meu governo ideal não haveria desvios de verba ou qualquer tipo de ilegalidade ou irregularidade. O Fundo Nacional de Cultura receberia toda essa grana e repassaria ele mesmo para todos os projetos por ordem cronológica de aprovação, que seriam mais criteriosamente selecionados e necessariamente mais acessíveis à população. Mas se o governo bancou todo o projeto e todos os envolvidos já receberam seus salários e puderam exercer sua arte com dignidade, por que uma grande parte do dinheiro da bilheteria não deveria voltar para os cofres públicos e possibilitar a produção de mais arte? Teoricamente, atualmente, esse dinheiro poderia ser usado para garantir a produção seguinte. Mas quem vai querer usar dinheiro próprio se pode usar o dinheiro do governo? E assim, alguns poucos enriquecem, que são os mesmos poucos que tem patrocínio garantido nas grandes empresas. Enquanto outros não conseguem nada e acabam pagando para trabalhar. Uma vantagem para as produções bem sucedidas de público seria a seguinte: essa parte da bilheteria que voltaria para o governo ficaria numa espécie de poupança para ser usada prioritariamente para futuros projetos aprovados do mesmo proponente. Em vez de entrar na fila de novo para conseguir o dinheiro, ele teria o direito de reinvestir o lucro por ele obtido e assim tornar a sua arte possível.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Utopia

Em um mundo civilizado, as pessoas que um dia se amaram, nunca deixariam o respeito escorrer pelo ralo junto com a relação. Elas se separariam com a mesma felicidade e cordialidade com que se casaram. Ao se casar, fariam um juramento de ficar juntos até que a vida os separe. Porque mesmo a morte é parte da vida, não é mesmo? Quando a relação chegasse ao fim, nunca por motivo de traição já que o respeito continuaria ali, firme, os dois organizariam uma belíssima festa para celebrar seu divórcio religioso. Sim, porque Deus está presente em todos os momentos e também é capaz de abençoar os divorciados. Se o padre diz que o que Deus uniu o homem não separa, em caso de divórcio não há mais ninguém a quem culpar. Só pode ser vontade divina. E o que Deus separou o homem não pode mais suportar viver junto. A festa do divórcio, além de celebrar a coragem do casal em assumir publicamente o fracasso de suas intenções eternas, teria duas grandes utilidades. A primeira seria a chance do ex-casal conhecer pessoas novas e começar a se reinserir no mercado com o apoio das suas pessoas queridas. A segunda seriam os presentes. Numa separação é preciso fazer um milagre que sempre acaba dando em briga. Transformar uma casa em duas. Por isso, os convidados seriam convidados a comprar para si mesmos um ítem para a casa e levar de presente o seu antigo, em bom estado. Assim, evita-se a briga de quem vai ficar com o que é novo e o que é velho. Dessa maneira, os ex-apaixonados teriam tudo vezes dois, que dividido por dois dá certinho. Na cerimônia a futura ex-mulher espera o futuro ex-marido no altar. Ela sabia que não devia ter marcado para domingo porque é dia de futebol e ele ia acabar se atrasando. Mas marcou mesmo assim, só pra contrariar. Enfim, ele chega. Um pouco mais mal vestido do que ela gostaria e com a barba grande do jeito que ela não gosta. Mas, graças a Deus, ela não tem mais nada com isso. Ele pensa a mesma coisa ao ver o olhar de reprovação dela não seguido das reclamações habituais. Talvez possam até ser amigos um dia. Não, amigos não. Nem pensar. O padre inicia a cerimônia, bem rápida porque ninguém tem tempo a perder. Chega a hora do juramento que cada um repete enquanto tira a aliança do outro. "Eu, Fulano(a) de Tal, prometo não atrapalhar as tuas futuras relações, não torcer para que não sejas feliz novamente e não difamar-te na frente dos nossos filhos. Prometo não te telefonar, mandar e-mails, nem manter contato através de redes sociais, exceto quando estritamente necessário. Prometo continuar te respeitando sem jamais voltar a amar-te ou pensar em voltar até a morte nos livre de vez um do outro." O padre pergunta se alguém tem alguma coisa contra a separação. O filho mais novo ensaia uma reclamação. Sua irmã se apressa em dizer pra ele ficar quieto porque a partir de agora eles vão ganhar dois presentes de aniversário e de natal. A mãe olha para o filho com cara de coitado ele não sabe de nada da vida e diz que quando ele crescer, vai entender. Tudo acertado. O padre, enfim, diz: "Eu vos declaro ex-marido e ex-mulher. Pode começar a pagar a pensão." Na saída da igreja, os solteiros e solteiras, descasados e descasadas, viúvos e viúvas jogam papeizinhos com seus números de telefone em cima dos recém-divorciados. Agora é pra valer. Porque ex é para sempre.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Lar

Na primeira vez que você me olhou, eu senti fome. Provavelmente. Eu estava sempre com fome naquela época. Na verdade, eu não tenho ideia de quando foi a primeira vez que você me olhou. Eu nem devia estar olhando. Eu nem percebi a onda de desejo na minha direção. Também não me lembro da primeira vez que te olhei. Nem da segunda ou terceira. Na primeira vez que te enxerguei, eu já devia ter te olhado milhares de vezes. Engraçado como somos capazes de passar pela mesma rua todos os dias e de repente descobrir um prédio que sempre esteve lá. Foi assim. De repente você estava lá com toda sua misteriosa arquitetura onde antes eu achava que tinha... O que é que tinha lá mesmo? Não sei. Nunca prestei atenção. Eu morava do outro lado da rua e não ficava espiando as casas dos outros. Mas, um dia, fiquei sem casa. Morava de favor na casa de um e de outro. Passei a prestar atenção nos anúncios de jornal e nas fachadas dos prédios à procura de uma placa que dissesse "vende-se", ou pelo menos "aluga-se". E qual a minha surpresa ao ver ali, na minha antiga rua, do outro lado, um belo prédio onde não tinha placa alguma. Ele tinha sido construído para uma única moradora que, até então, nunca tinha aparecido para ocupá-lo. Foi o que o porteiro me disse. Eu posso só fazer uma visitinha pra ver como é por dentro? Pedi, jogando pra ele todo o meu charme. Claro, é todo seu. Foi o que ele me respondeu. Fiquei um pouco confusa com aquela resposta. Será que era só maneira de falar? Dei uma olhadinha e fui embora, sem garantir que um dia voltaria. Precisei de um tempo pra arrumar as malas, juntar meus pertences espalhados e preparar a mudança. Cheguei lá com toda minha bagagem e nada perguntei para o porteiro com medo da resposta. Arrumei minha melhor cara de dona do pedaço e ocupei aquele a quem eu chamo de lar.